sobre
POR UMA ARTE DE CULTIVAR E ESPERANÇAR CIDADES
Vivemos um mundo desencantado, uma tragédia que parece não ter fim. Hegemonia em crise, seu processo de desagregação carrega consigo aumento de instabilidades, de violência, de opressão. Com a pandemia, o sentido da morte entranha todas as dimensões da vida social, pois é ela mesma que se encontra sub judice, impossibilitada de pleno desenvolvimento. Forças destrutivas operam recorrentemente, aguçando injustiças, carências, crueldades, numa razão de mundo que parece existir apenas enquanto sua própria negação.
Mas vivemos também outros mundos. A partir do chão, do cotidiano, do comum, florescem movimentos que se insurgem contra todos os “cídios”, desconstruindo repetidamente a morte e suas fábulas, a injustiça e suas racionalidades, o destino marcado e suas despossessões. São vínculos enredados e sempre em processo que se alimentam da busca pela expansão de horizontes vitais em todas as direções e dimensões, sejam referentes a raça, gênero, sexualidade, ambiente, tradições, crenças, culturas, saberes, modos de vida, sejam formulações de pulsões de vida ainda por vir. Possibilidade de ser, individual e coletivamente, como ponto de partida e como ponto de chegada, pois todo particular carrega uma fagulha de universal. Ser, ao mesmo tempo, “uma tarefa e um enorme recipiente pleno de futuro” (Bloch, 2005: 120).
Insatisfação e esperança, portanto, caminham juntas, porque “ambas brotam do não à carência”. É um “alvorecer para diante”, alimentado por fermento utópico e coletivo. Quem sabe uma “primavera histórica”, (Bloch, 2005:16; 115; 119) da qual são princípios-guia razão ética e responsabilidade política e partilhada para com os destinos coletivos e individuais.
Como processo de organização das responsabilidades, como momento moral, como protagonismo múltiplo (Molinier, Paperman, 2015), o cuidado adquire centralidade e potência, enquanto política urgente e abrangente de vida. Ou um imperativo, “um estado afetivo, um fazer material vital e uma obrigação ético-política” (PUIG DE LA BELLACASA, 2010, p. 90, tradução livre).
A política do cuidado, portanto, já exercida e a exercer nas cidades, brota do não à carência enquanto insatisfação e esperança. E mobiliza a temática do urbBA[21], desdobrando-se nas ideias do cultivar, do esperançar e do construir espaços favoráveis ao florescimento do comum.
A ideia de cultivar cidades remete a um princípio fundamental de reconhecimento da legitimidade do já existente que confronta as iniquidades da ordem capitalista hegemônica. Produzida pela prática social e nos embates pela afirmação das suas dimensões pública e coletiva, de um comum que resiste, se insubordina e constrói possibilidades diante das tentativas de imposição do primado do privado, a cidade (re)existe como lugar de liberdade, de criação e de cultivo de esperança. Reconhecidas ou não, essas práticas do cuidado têm mostrado que são responsáveis pelo cultivo e manutenção da vida, concretizando a urgência de criar esperança.
Embora muitas expressões de negação desse princípio ainda proliferem – ordem rígida, continuidade histórica entre um passado e um futuro que carregam em si o grotesco, valores e práticas fundamentalmente individualistas e privatistas –, condutas e valores de solidariedade, de cooperação e de reciprocidade florescem e se alastram. Eles orientam práticas inspiradas pelo cuidado, pelo bem viver e pela construção do direito à cidade. Enquanto exercícios de utopia experimental, eles se nutrem na práxis social e política de produzir e vivenciar a cidade alargando seus horizontes de sentidos, expectativas e justiça.
No contexto da pandemia da Covid-19, o cuidado acumula ainda novos conteúdos, expectativas e escalas, ao acender as dimensões de responsabilidade pública, coletiva, de proximidade, interpessoal. Traz com ele o sentido de cultivar como esperança de expandir e frutificar o coletivo e o comum nas nossas cidades, esse imenso desafio civilizatório, carregado de incertezas.
Entende-se, portanto, que o momento atual faz ainda mais urgente repensar o campo do urbanismo enquanto um campo produtor de vida e não como um mero instrumento de reprodução da ordem hegemônica vigente. O urbBA[21], deste modo, se apresenta como um espaço de incentivo e aprofundamento das reflexões a partir de formulação conceituais, de experiências realizadas ou em curso, indagando modos democráticos de existir coletivamente nas cidades, mobilizando outros campos teóricos, atravessando fronteiras e buscando assim a construção de diálogos multi-inter-trans-intra-disciplinares.
É nesse caminho de problematizações que o urbBA[21] “Por uma arte de cultivar e esperançar cidades” se justifica, pela urgência em criarmos espaços que possibilitem repensar em conjunto e criticamente a forma como nos relacionamos uns com os outros, com os territórios e com os objetos à nossa volta. Cooperação e solidariedade são condição para a transmissão de valores aguçados na presente conjuntura, sejam eles estabelecidos a partir de relações de ajuda mútua, de harmonia, de respeito, de empatia, de conhecer além do já conhecido. É preciso repensar nossa estratégia de como sobrevivermos bem juntos, agora e no futuro próximo.
Três ângulos de abordagem da temática estruturam o Seminário, sempre buscando explorar relações, interfaces, conflitos, territorialidades, experiências, movimentos, tradições que vinculem cidades e cuidado:
1) cuidado como política;
2) cuidado como prática;
3) cuidado como formação.
Referências:
Bloch, Ernst. O Princípio Esperança, volume 1. Rio de Janeiro: EdUERJ/Contraponto, 2005.
Molinier, Pascale, Paperman, Patricia. “Descompartimentar a noção de cuidado? In: Revista Brasileira de Ciência Política, nº18. Brasília: set. – dez. 2015.
Puig de la Bellacasa, Maria. “Matters of care in technoscience: Assembling neglected things”. In: Social Studies of Science, 41(1), 2010.
Tronto, Joan. “Creating Caring Institutions: Politics, Plurality, and Purpose”. In: Ethics and Social Welfare, vol. 4, n. 2, july 2010.